Descrição de chapéu Análise

30 anos de Top of Mind revelam ironias da revolução digital sobre marcas do setor

Dados da pesquisa Datafolha ilustram as mudanças nos hábitos de consumo de tecnologia dos brasileiros nas últimas décadas

Um dos maiores clássicos da publicidade de todos os tempos, “1984”, campanha de lançamento do Macintosh, criada pela agência Chiat/Day para a Apple e dirigida por Ridley Scott, se inspirava na obra de George Orwell para criticar monopólios de mercado e pregar resistência ao “pensamento único”, personificado pelo Big Brother, projetado na “teletela” de um sistema totalitário.

A propaganda de 60 segundos, que foi ao ar apenas uma vez na TV, no intervalo do Super Bowl americano, em 22 de janeiro de 1984, tinha como alvo a concorrente IBM, que também anunciaria no mesmo espaço, assim como o videogame Atari.

Em 2019, 35 anos depois, a marca Samsung conseguiu feito inédito —em pesquisa nacional do Datafolha, monopolizou o pensamento dos brasileiros em todas as categorias que envolvem as chamadas “três telas” e se firmou no imaginário dos consumidores, como um nome associado à inovação e confiança.

Do estranhamento que parte da audiência do Super Bowl experimentou quando viu a maçã, então psicodélica, anunciar que seria a solução para que 1984 não se tornasse “1984”, ao triunfo da marca coreana no Brasil, existem 30 anos de dados da Folha Top of Mind para contar os reflexos dessa história no país.

Ao longo desse tempo, nenhum outro cenário foi tão dinâmico e determinante para a relação do consumidor com as marcas do que o digital. Não só em razão das mais de dez categorias que eram incluídas e excluídas do estudo de acordo com a evolução tecnológica, mas principalmente pela democratização da informação que ela potencializou e seu efeito sobre o “awareness” (conhecimento geral).

Na primeira vez que a categoria computador entrou na pesquisa, há 22 anos, a grande maioria dos brasileiros (81%) não conseguia citar uma única marca do produto. Entre os nomes lembrados, as mais frequentes eram de componentes, como dos processadores Pentium e monitores Five Star, já que boa parte das máquinas eram montadas para viabilizar o preço em mercado tão desigual. A IBM, na ocasião, era apontada por 5%, e a Apple não aparecia nem nas classes A/B.

Em 1998, também foi a primeira vez que o Datafolha incluiu telefones celulares no levantamento —61% dos brasileiros não souberam responder e 97% nem tinham o aparelho. Motorola, em função do modelo Startac, era a marca mais citada, mas várias outras figuravam no share of mind, como Nokia, Ericson, Sony e Panasonic.

Na pesquisa de 2019, 91% da população tinha um telefone celular e o desconhecimento de marcas ficou no patamar de 20%.

No mesmo espaço de tempo, a dificuldade para citar marcas das operadoras do setor despencou de 34% em 2003 para índices que variam de 3% a 5% nos últimos anos. O mesmo fenômeno acontece com operadoras de banda larga, que tem o dobro do volume de repostas que apresentava há menos de uma década.

A internet, que em 2002 alcançava apenas 19% dos habitantes do país, chegou a 70% de cobertura na edição da pesquisa do ano passado. Popularizada pelos smartphones que, em 2012 —quatro anos depois do lançamento do iPhone—, não chegava a 20% de posse entre os brasileiros. Hoje, ela é realidade para 73%.

E nessa categoria, que agrega também os tablets, a Samsung reina desde o início, sendo a primeira marca que vem à cabeça para metade dos brasileiros. Apple, que apareceu com 7% no total da amostra passada, recebeu menções que ultrapassaram 20% entre os mais ricos e integrantes da classe A. Mesmo assim, não oferece riscos à liderança folgada da coreana nem nesses estratos.

Mas a categoria que melhor sintetiza as mudanças provocadas pela evolução digital no cenário de mercado das últimas décadas, e consequentemente no Top of Mind, é uma das pioneiras do levantamento: a maior das telas, a TV.

Em 1991, quando a pesquisa foi feita pela primeira vez, 40% da população brasileira ainda não tinha um aparelho a cores, mas a retenção de marcas era alta e o desfile de nomes ia da líder Philips, passando por Philco/Hitachi, Mitsubishi, Semp/Toshiba, Panasonic, Sony, até CCE e Telefunken.

A partir dos anos 2000, marcas coreanas começaram a receber menções, com a arquirrival LG abrindo vantagem sobre sua conterrânea a partir de 2005. Com o início da TV digital no país, a partir de 2007, a Samsung começa a reagir e assume a ponta isolada em 2015, após três anos de empate técnico, por meio de estratégias agressivas no mix de marketing. Em 2019, abriu 20 pontos percentuais de vantagem sobre sua principal concorrente.

Sobre o futuro de marcas no cenário digital, o desempenho positivo de aplicativos durante a pandemia do novo coronavírus —especialmente os de streaming, como Netflix, de comércio eletrônico, como Mercado Livre, e de delivery, como iFood—, medidos em pesquisa Datafolha sobre nomes que se destacaram na quarentena, dão uma pista do espírito do tempo para empresas, produtos e serviços do setor: empatia junto ao consumidor.

Nesse contexto, vale uma nota. Há poucos dias, a Epic Games lançou uma campanha crítica à Apple por bloquear, por razões comerciais, um de seus produtos, o jogo Fortnite, na App Store.

A peça é uma sátira a “1984” e acusa a empresa de praticar o monopólio que há 36 anos condenava. Encerra o filme, intitulado “Nineteen Eighty-Fortnite”, buscando engajamento à “causa” para não deixar que 2020 continue se transformando em “1984”. Com “diretrizes de purificação das notícias”, um big brother no bolso e uma marca na cabeça, é bem provável que seja tarde demais.

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