Descrição de chapéu Análise

Folha Top of Mind acompanha 30 anos de luta por diversidade na propaganda brasileira

Marcas reveem valores de representatividade nas campanhas, fator que impacta diretamente em índices de lembrança

Uma sereia loira, de olhos claros, elogia um banhista branco numa praia brasileira:

— Sabe que te achei um gato?

— Cuidado, porque gato come peixe, né?! —responde o garotão.

O diálogo é parte de uma propaganda da cerveja Skol de 2000, ano em que a marca alcançava no Top of Mind suas então recentes coirmãs e líderes Antarctica e Brahma, depois da criação da Ambev em 1999.

Em 2015, já consolidada líder da categoria, com taxas equivalentes de lembrança tanto entre homens (40%) quanto entre mulheres (41%), Skol espalhou em mobiliário urbano de pontos de ônibus uma campanha para o carnaval daquele ano: “Esqueci o não em casa”.

Segundo pesquisas do Datafolha feitas em 2016, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 85% das brasileiras temiam ser vítimas de agressão sexual, sendo que o transporte público era um dos locais onde o assédio mais acontecia.

A repercussão da campanha foi negativa e intervenções feitas nas peças viralizaram nas redes sociais provocando um divisor de águas nas propagandas da marca —em 2017, por exemplo, Skol assumiu o machismo do passado e propôs uma releitura de sua publicidade sob a ótica feminina na ação intitulada “Reposter”.

A jornalista Mila Alves; e a publicitária Pri Ferrari em foto ao lado do cartaz da campanha publlicitária de carnaval da cerveja Skol, em que protestaram em sua página de perfil do Facebook contra Machismo do anúncio
Campanha da Skol no Carnaval de 2015 recebeu uma série de protestos - Reprodução/Facebook

O case da cerveja ilustra a importância de um dos principais vetores na formação da opinião pública, na relação de consumidores com produtos, serviços e na lembrança de marcas: a transformação de códigos e valores e o grau de representatividade social. Esses fatores nos últimos anos foram potencializados pelas redes digitais, que conseguem agregar usuários por afinidade temática em tempo real.

O machismo em xeque tem correlação com a crescente participação da mulher na população economicamente ativa e na evolução da escolaridade no segmento feminino. Além de serem maioria no país, estudaram o mesmo que os homens e apesar de ganharem menos, personificam a figura central da instituição mais valorizada pelos brasileiros —a família.

Pesquisa Datafolha sobre a família brasileira realizada em 1997 já detectava a tendência ao concluir que a mulher passava de “dona de casa à dona da casa”. Era a pessoa com quem os filhos mais conversavam sobre os mais diferentes temas, e sobre quem recaíam responsabilidades e expectativas que deixavam de ser direcionadas exclusivamente aos homens.

Ao modelo nuclear que prevalecia na instituição, vinha se agregando queda na importância atribuída ao casamento e uma alternativa matrifocal, com relações que orbitavam ao redor da figura materna em detrimento à paterna.

E quando se fala em família na propaganda, a primeira categoria que vem à cabeça é, sem dúvida, margarina. A marca líder absoluta no Top of Mind de 1991 a 2005, Doriana, chegou a batizar modelo da instituição considerada ideal.

A atual campeã, Qualy, no ano em que ocorreu o primeiro levantamento do Datafolha , em 1991, trazia marcadores yuppies, como a preocupação com carreira e saúde, sem abandonar a tradição do núcleo: mostrava uma família se formando em uma novelinha descolada que contava a história de um casal de jovens brancos, Marina e Marcelo.

Pelo histórico de maior equilíbrio de gênero e apelo modernoso, a virada de Qualy sobre Doriana se deu primeiro entre as mulheres e entre os que tinham até 35 anos, mas manteve desempenho muito melhor na classe A/B do que na C até 2016, tendência observada em relação a Doriana até 2014.

Em 2015, a Doriana incluiu união interracial e diversidade de valores à sua campanha, assim como a Qualy em 2018, mas, em ambos os casos, o protagonismo passava longe, por exemplo, da participação majoritária que não brancos têm na composição da população brasileira.

Série de comerciais da Qualy em 2018 trazia, entre os personagens, a cantora Gaby Amarantos
Série de comerciais da Qualy em 2018 trazia, entre os personagens, a cantora Gaby Amarantos - Divulgação

Autodeclarados pretos e pardos totalizam cerca de 55% dos brasileiros, segundo pesquisas nacionais do Datafolha, mas para se ter uma ideia da polêmica que a representatividade na mídia provoca, metade dos entrevistados em estudo sobre preconceito de cor feito pelo instituto em 2008 discordava da garantia de um percentual mínimo de participação de negros em filmes, novelas e propaganda.

Sobre esse aspecto, a sátira do coletivo familiar “Tá bom pra você?” que em 2013 criou uma campanha para a fictícia “margarina Black” se mostra mais urgente ao encerrar a peça com a afirmação “negro também come pão” do que a alegoria sobre intolerância e preconceito que o “Porta dos Fundos” produziu recentemente no filme intitulado “Comercial de margarina”, em ação que sugere “product placement” da marca líder no Top of Mind há 13 anos.

Pelo menos metade da população, em matriz que define posicionamento sobre temas polêmicos elaborada pelo Datafolha, se mostra conservadora sim, mas ao mesmo tempo aberta à diversidade e contra conflitos e violência.

A maioria dos brasileiros rejeita tanto a descriminalização total do aborto como a das drogas, diz que a religião torna as pessoas melhores mas defende que a homossexualidade deve ser aceita pela sociedade, assim como se coloca contrária à posse de armas, por exemplo. Além da família, valorizam a inclusão por meio da educação e do trabalho.

Em 2016, a então recente líder isolada das "três telas” na Folha Top of Mind, Samsung, conseguiu reunir boa parte desses valores em uma única campanha, que divulgava o patrocínio aos jogos olímpicos daquele ano no Rio de Janeiro.

Do Cristo Redentor que abre o filme ao jogador negro de sobrenome Jesus (51% dos brasileiros são católicos e 32% evangélicos), passando pela ideia de superação nos treinos (trabalho), pela inclusão de paraolímpicos, pelo beijo gay em comemorações de rua até o incentivo de Bernardinho, pai-técnico, ao filho Bruno (família), boa parte da população se via ali representada.

Mas reações recentes à diversidade na propaganda mostram que as conquistas que engatinham até aqui sofrem ameaças constantes. O Boticário, marca que figurava entre as mais citadas na categoria cosméticos até quando ela foi aplicada no Top of Mind de 2003, sofreu ataques sistemáticos por trazer em 2018 uma família negra como protagonista de seus comerciais.

No ano passado, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) solicitou não só que fossem retiradas do ar as peças publicitárias do Banco do Brasil que tratavam de diversidade como também demitiu o diretor de marketing da instituição. Top of Mind da categoria desde sua inclusão na pesquisa em 1992, o banco conheceu em 2019 sua pior performance em quase 30 anos.

Com a quarentena, pesquisas do Datafolha feitas recentemente para esta Folha e para o C6Bank revelaram que o período de isolamento aprofundou desigualdades, prejudicando especialmente mulheres e negros. Em tempos de crise de representação aguda, uma campanha como a mais recente de Skol Puro Malte, intitulada “Churraaaaaaaaaaaasco”, soa como resistência de quem ao sentir a dor na pele assumiu não só o lugar de fala, como também o de grito.

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