Descrição de chapéu Análise desigualdade de gênero

Marcas miram a economia do cuidado para questionar desigualdade de gênero

Campanhas buscam refletir sobre divisão desigual de tarefas domésticas entre homens e mulheres

São Paulo

Há quase 30 anos, Omo é uma das marcas mais lembradas pelos brasileiros, independentemente da categoria pesquisada pelo Datafolha no estudo nacional do Top of Mind. O simbolismo institucional da "velha mãe coruja" (Old Mother Owl) é ratificado pelo estrato que a mantém no topo há tanto tempo —as mulheres.

Consolidando-se as bases de todas as pesquisas realizadas nos últimos 20 anos em um agregado que reúne 120 mil entrevistas, o sabão da Unilever fica na frente não só da tradicional Coca-Cola como de outras com retenção mais recente como Nike e Samsung.

Alcança no segmento feminino mais do que o dobro das menções verificadas entre os homens, independentemente da classe econômica ou da escolaridade dos entrevistados. Há leve contraste por faixa etária —mulheres com mais de 25 anos tendem a citar a marca com maior frequência.

Alguns poderiam encontrar no resultado respaldo para artigo publicado por um jornal do Vaticano no Dia da Mulher há 12 anos. O "L'Osservatore Romano" na sua edição de 8 de março de 2009 trazia sob o título "A Máquina de lavar e a liberação das mulheres —ponha detergente, feche a tampa e relaxe", uma defesa do eletrodoméstico como vetor da liberdade feminina, mais do que anticoncepcionais e participação no mercado de trabalho.

No entanto, para as mulheres, se relaxar já estava fora de questão antes da pandemia, agora então habita a esfera das fantasias. Eventuais avanços na inclusão (escolaridade em nível equivalente ao dos homens), crescente participação no mercado de trabalho e pautas importantes de comportamento foram colocados em xeque pelo isolamento social.

Pelas pesquisas realizadas pelo Datafolha, elas constituem o segmento que mais perdeu emprego durante o período e que mais se voltaram à rotina de tarefas domésticas e atenção com os filhos, a denominada care economy (economia do cuidado) —uma carga laboral não remunerada de manutenção da vida que limita o tempo para o exercício de outras atividades econômicas e sociais.

Recentemente, a Top of Mind de lavadoras de roupas, Brastemp, lançou a campanha "Tarefa Doméstica É Tarefa de Todos", em que ações intituladas "desculpas deslavadas" exibem os argumentos esfarrapados de quem foge da lida. Com a hashtag #LaveSuasDesculpas, invadiu redes sociais e gerou debate sobre o tema.

Reforça a desigualdade a constatação de que na pesquisa do ano passado, as marcas de produtos de higiene e limpeza, como água sanitária, papel higiênico e limpador multiuso, são mais lembradas pelas mulheres do que pelos homens, em diferenças que chegam a até 11 pontos percentuais.

Dentre os afazeres domésticos, cozinhar foi um dos que mais cresceu durante a quarentena, declarado mais pelas mulheres do que pelos homens. Isso fica ainda mais claro quando se observa os resultados de lembrança das marcas de alimentos cruzada por ambos os gêneros. Só nos básicos arroz, feijão e macarrão, os contrastes em desconhecimento no segmento masculino alcançam até oito pontos percentuais.

Retratando esse contraste, campanha atual da Chevrolet, uma das marcas mais citadas na categoria carro, onde a dificuldade dos homens em lembrar um nome é de apenas 1%, busca refletir novo significado para o insulto "vai pilotar fogão", às vezes proferido contra mulheres no trânsito. Com desfile de profissionais —uma pilota de avião, uma médica cirurgiã, uma surfista e uma engenheira— o filme intitulado "Pilotas" termina com a chef Paola Carosella dizendo que "pilotar, a gente pilota o que quiser".

A mais anti-feminista das feministas, Camille Paglia alertava em entrevistas antes do lançamento de seu "Mulher Livre, Homem Livre", que, diante de catástrofes naturais ou políticas, a partilha das atribuições de homens e mulheres seria reeditada, algo como uma regressão ao velho normal —mesmo no auge das mortes por Covid no Brasil, segundo as pesquisas do Datafolha, a taxa do segmento masculino que saía do isolamento social para trabalhar superava a do feminino em aproximadamente 20 pontos percentuais.

O home-office era privilégio para poucos. A democratização da internet, apesar de desigual em qualidade e cobertura, atendeu necessidades específicas da quarentena e alcançou inclusive a maioria das classes D/E. No Folha Top of Mind de 2020, apesar do segmento masculino se lembrar mais de marcas do setor, como de computadores, smartphones e aplicativos (próteses macluhianas), as mulheres apresentavam conhecimento equivalente sobre apps de videochamada e os de filmes e séries, artifícios de conforto para a rotina de sobrecarga física e mental dentro de casa.

A urgência de encarar as disparidades da "care economy" ficou ainda mais evidente quando o presidente Joe Biden a colocou como uma das prioridades no plano da retomada americana no pós-pandemia.

Enquanto o Brasil trava a agenda social com turbulências institucionais e incertezas sobre os rumos de políticas de redistribuição de renda, a miséria e a fome voltam a assombrar o país. Nesses estratos há grande ocorrência de famílias matrifocais, sem a figura paterna, e onde a mãe empilha tarefas, geralmente sem eletrodomésticos ou redes de apoio. Não há filme ou série que dê alento a esse drama.​

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