Incêndios e enchentes levam crise climática à casa do consumidor

Brasileiro adota hábitos de compra mais conscientes, e empresas adequam suas estratégias

São Paulo

Depois das tragédias provocadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul e pelos incêndios espalhados pelo país, o debate sobre a crise climática deixou de ser uma questão teórica restrita aos departamentos de ESG das grandes companhias e chegou à casa do consumidor.

Do mercado de higiene e beleza ao de combustíveis, passando pelos setores de varejo, alimentos, bebidas e aviação, o consumidor começa a levantar mais questionamentos sobre as medidas ambientais adotadas pelas marcas.

Investimentos em fontes de energia limpa para a produção e economia circular estão entre as respostas das corporações para atender esse cliente atento aos efeitos dos produtos e serviços que consome, segundo executivos de algumas das maiores empresas do país.

Viviane Mansi, diretora de relações corporativas da Diageo Brasil
Viviane Mansi, diretora de relações corporativas da Diageo Brasil - Adriano Vizoni/Folhapress

"As mudanças climáticas estão provocando impactos profundos na economia e na sociedade brasileira em geral, modificando inclusive os hábitos de consumo", afirma Ricardo Berni, diretor-executivo de marketing e digital da Raízen, que representa no país a Shell, Top Posto de Gasolina na Folha Top of Mind deste ano.

O movimento é mais intenso entre os jovens, acrescenta, e essa transição de mentalidade tem implicações diretas no reconhecimento público das marcas.

"Nos postos Shell, observamos um aumento na demanda por etanol e estações de recarga de veículos elétricos, impulsionado pela busca por alternativas mais sustentáveis e de fontes 100% renováveis. Essa tendência tende a se consolidar nos próximos anos", diz Berni.

Na avaliação de Bárbara Sapunar, diretora-executiva de ESG da Nestlé Brasil, os critérios do consumidor passam por um processo de transformação. A multinacional venceu três categorias no Top Alimentação, além de conquistar o Top Páscoa.

"O conceito de qualidade evoluiu dos atributos funcionais e abraçou novas dimensões, incluindo aspectos intangíveis como confiança, reputação, transparência sobre a origem do produto e impacto social. Hoje, os consumidores buscam mais informações, considerando as etapas de produção dos alimentos", diz.

Bárbara Sapunar, diretora-executiva de ESG da Nestlé Brasil
Bárbara Sapunar, diretora-executiva de ESG da Nestlé Brasil - Adriano Vizoni/Folhapress

Para Juliana Abreu, gerente de sustentabilidade da Unilever Brasil, que tem quatro marcas líderes na pesquisa Datafolha de 2024 —Comfort, Dove, Hellmann's e Omo—, o nível de exigência nas questões ambientais vem crescendo exponencialmente, e a adequação das empresas vai exigir preparo.

"Notamos que a preservação do meio ambiente é um dos fatores mais demandados pelos consumidores. Por isso, temos investido cada vez mais no desenvolvimento e transporte de produtos, além de embalagens, que causem o menor impacto ambiental possível, nos apoiando na inovação e na tecnologia como aliadas para esse processo", explica.

Já a Tramontina, Top Faca de Churrasco do levantamento, fez um estudo para identificar os temas críticos em sua gestão de sustentabilidade há dois anos, conta Lizandra Marin, gerente da área na empresa. "O público está cada vez mais consciente sobre os efeitos das mudanças climáticas, o que se reflete em uma demanda crescente por produtos e operações que respeitem o meio ambiente."

Em resposta a essa conscientização, de acordo com a executiva, a Tramontina investe agora para aprimorar a eficiência hídrica e energética de seus equipamentos, como as lava-louças, e desenvolve uma série de produtos com plástico reciclado, aço fabricado com energia renovável e reaproveitamento de excedente de alumínio —alguns exemplos são panelas, facas e talheres. Uma linha de móveis com resíduos plásticos retirados das praias também foi lançada.

Susy Yoshimura, diretora de ESG do Grupo Carrefour Brasil
Susy Yoshimura, diretora de ESG do Grupo Carrefour Brasil - Adriano Vizoni/Folhapress

Não se trata apenas de construção de reputação. A iniciativa privada tem papel crucial como geradora de conhecimento, para elevar a compreensão do consumidor sobre o assunto, afirma Viviane Mansi, diretora de relações corporativas da Diageo Brasil, que produz o Top Uísque Johnnie Walker.

"Nosso negócio nasce no campo. De plantações de cana, no caso da cachaça Ypióca, ou do agave azul, que é base para a nossa tequila Don Julio. Essas culturas estão sujeitas aos efeitos climáticos", diz a executiva, que cita também os impactos de situações extremas como as ocorridas na Bahia, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. "Elas acabam afetando nossos colaboradores, consumidores e clientes, comércio e varejo, em capacidade de atendimento e geração de receita."

A Diageo tem metas para reduzir o uso de água na produção de suas bebidas e reabastecer áreas de estresse hídrico, além de projetos para reciclagem de vidro, reutilização de garrafas e redução dos cartuchos de papel em embalagens.

"Notamos uma nova geração de consumidores muito mais conectada com o tema, buscando se relacionar com marcas que têm propósito. A frequência crescente de eventos climáticos adversos, além das temperaturas recordes, torna o assunto cada vez mais presente no cotidiano. Não estamos mais falando de algo distante, mas de situações que podem nos afetar diretamente ou a alguém próximo, um familiar ou amigo", afirma Mansi.

Luis Meyer, diretor de ESG do Grupo Boticário, diz que a empresa acompanha a questão ambiental há décadas, mas tem percebido maior atenção dos consumidores para as pautas ligadas à sigla (ambientais, sociais e de governança).

Juliana Abreu, gerente de sustentabilidade da Unilever Brasil
Juliana Abreu, gerente de sustentabilidade da Unilever Brasil - Adriano Vizoni/Folhapress

"Os eventos recentes trouxeram visibilidade para a gravidade do aquecimento global, tornando o tema mais urgente para a sociedade. As pessoas estão mais exigentes em relação à transparência das empresas sobre suas ações socioambientais e buscam produtos feitos de forma sustentável", avalia Meyer.

Em 2016, o Grupo Boticário incluiu, pela primeira vez, as mudanças climáticas em sua matriz de riscos. Em 2019, começou a implementar energia limpa nas operações de fábricas e centros de distribuição.

Na BRF, além do aumento do uso de energias renováveis, as ações incluem gestão da cadeia de fornecimento com rastreabilidade. Nos casos em que a catástrofe já está concretizada, a mobilização das marcas também é relevante, acrescenta o diretor de sustentabilidade da companhia, Paulo Pianez, citando as doações durante as enchentes no Rio Grande do Sul.

"A demonstração de compromisso diferencia as empresas no mercado, atraindo consumidores que valorizam práticas responsáveis e promovendo lealdade às marcas", afirma o executivo da companhia, dona de Sadia e Qualy, tradicionais campeãs da Folha Top of Mind.

Na aviação, algumas das alternativas para reduzir a queima de combustível incluem a aquisição de aeronaves de maior eficiência e o plano de otimização das rotas, para encurtar o caminho percorrido pelos aviões. Outra esperança para a descarbonização é o SAF, o combustível sustentável do setor.

Com o aumento de informações sobre o aquecimento da Terra na mídia, a sociedade está mais consciente a respeito dos impactos das emissões de gases nocivos, diz Maria Elisa Curcio, diretora de assuntos corporativos da Latam Brasil. "Observamos isso de forma positiva, com o consumidor atuando para o avanço da busca por soluções, que envolve os setores público, acadêmico e privado."

Diretora de sustentabilidade do Grupo Carrefour Brasil, Susy Yoshimura cita pesquisa Datafolha de julho, segundo a qual 97% dos brasileiros acreditam que o planeta está passando por mudanças climáticas. "A maior conscientização nos traz uma evolução de práticas e também de conexão com os valores e as escolhas do que consumimos", diz.

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