Parcerias com protetores da fauna melhoram a imagem das empresas

De harpia a peixe-boi: ONGs e grandes companhias se unem em defesa de animais ameaçados

São Paulo

Quando duas espécies de seres vivos se encontram, pode haver amor à primeira vista. Se descartar a palavra "amor" nesse tipo de situação, é possível admitir que se trata, ao menos, de um elo forte o suficiente para uma relação. Quem sabe até uma dedicação por toda a vida. Tal atitude carrega um peso financeiro que, em alguns casos, pode ser compartilhado com grandes empresas no Brasil.

O "à primeira vista" de Marcos de Oliveira, biólogo na Itaipu Binacional, em Foz do Iguaçu (PR), foi com uma caixa de papelão de uma TV de 29 polegadas. Dentro da caixa estava Caixa, uma jovem harpia (Harpia harpyja), vítima de tráfico de animais, entregue, durante o plantão de Oliveira, ao projeto de reservas biológicas que são mantidas pela Itaipu Binacional, maior usina hidrelétrica do país.

Com as asas abertas, ave de penas brancas, marrons e cinzas, voa por cenário repleto de plantas
Projeto na Itaipu Binacional foca reprodução da Harpia (Harpia harpyja), ave ameaçada de extinção - Alexandre Marchetti/Itaipu Binacional

A ave é tida como vulnerável na lista de espécies em risco de extinção, com uma situação crítica na mata atlântica, justamente o bioma em que suas ocorrências são raras.

Oliveira conta que não sabia o que era a Caixa dentro da caixa. A resposta veio de pesquisadores argentinos. "Nunca tinha visto uma harpia", diz. Depois desse episódio, começou um esforço para cuidar e entender essa grande ave.

Foram ele e outros funcionários da reserva que levaram para a Itaipu a ideia de desenvolver algo relacionado à conservação da harpia. O plano encontrou respaldo dentro da empresa. "A gente trabalha com 50 espécies. Nascem antas, veados, gatos-maracajás. Todos são espécies emblemáticas, mas as harpias... Falam que até o meu nariz é parecido", brinca o especialista.

Caixa é pai de 26 das 56 harpias que nasceram na reserva —sobreviveram 38. Atualmente, há 33 delas no local. Os trabalhos com fauna na Itaipu ficam localizados no refúgio biológico Bela Vista, próximo à barragem da usina, que inundou uma área considerável, de aproximadamente 1.350 km².

Já o "à primeira vista" da pesquisadora Neiva Guedes aconteceu, digamos assim, em 1989, com cerca de 30 araras-azuis (Anodorhynchus hyacinthinus), que se apoiavam sobre madeira seca no Pantanal sul-matogrossense.

A apresentação à espécie foi acompanhada de uma triste informação: elas estão fadadas a desaparecer. "O bicho me encantou. Saí dizendo para todo o mundo, embora não soubesse, que iria fazer algo para que ela não desaparecesse", conta a pesquisadora, que futuramente fundaria o Instituto Arara Azul, ONG hoje apoiada pela Fundação Toyota do Brasil, ligada à montadora japonesa de mesmo nome.

Dito e feito. Além do reconhecido trabalho do instituto —que monitora e cuida de ninhos da espécie, entre outras ações—, a arara-azul saiu da lista de animais ameaçados. No último livro vermelho da fauna ameaçada, publicado pelo ICMBio em 2018, há um destaque para a evolução na situação da espécie, "beneficiada por ações de conservação, especialmente na região do Pantanal".

Antes da empreitada de sucesso, Guedes conta que, ao começar a estudar de fato as araras-azuis, ainda em 1990, viu-se em meio a uma grande dificuldade de deslocamento no Pantanal e percebeu que precisava de um carro para fazer pesquisa e acompanhamento das aves, que possuem ninhos distantes uns dos outros. Ela então escreveu uma carta para diversas montadoras, inclusive para a Toyota. O "não" foi homogêneo.

A sorte veio quando um engenheiro da Toyota teve contato com o trabalho de Neiva e levou a necessidade da cientista ao conhecimento de seus chefes. Aí começou a relação da empresa com a cientista, que acabou virando praticamente uma piloto de testes de caminhonete. Foi também a semente para o início da Fundação Toyota do Brasil. "Foi como se me dessem pernas para andar no Pantanal", conta. "Hoje eu me localizo mais no mato do que na cidade."

Mesmo nestes tempos de crise do clima e ameaças constantes ao ambiente, sobretudo no Brasil, por que, afinal, uma empresa se meteria com conservação de bichos, uma ação considerada complexa e normalmente cara?

Projetos de preservação de fauna chegam facilmente à casa do milhão de reais investidos, inclusive alguns dos que estão citados nesta reportagem. Uma resposta direta, assumida pelas próprias companhias, é "a imagem".

Estar associado a um projeto positivo de conservação de fauna pode trazer benefícios para a reputação de uma marca, segundo Marta Blazek, pesquisadora do centro de estudos em sustentabilidade da FGV. Não necessariamente há benevolência nas ações.

"Existe uma coisa que chamamos de biodiversidade funcional. Uma coisa alimenta a outra. Você tira um bichinho ali, uma plantinha e você desmonta a funcionalidade da biodiversidade. É um tema muito importante. Tem empresas que já enxergam isso como riscos ao negócio", segue Blazek.

De toda forma, o usual é que o apoio seja para projetos e áreas que, de alguma forma, tenham relação com o que a empresa faz ou com os possíveis prejuízos causados por ela, seja na atividade normal, seja em acidentes. Empresa de capital aberto cujo acionista majoritário é o governo federal, a Petrobras, por exemplo, apoia diferentes projetos no litoral brasileiro. O primeiro deles, o Projeto Tamar, começou a ser financiado em 1982.

Hoje, em meio a 12 iniciativas patrocinadas, uma das principais linhas de financiamento vai para a Rede Biomar, que engloba os projetos Albatroz, Baleia Jubarte (a espécie também conseguiu sair da lista de ameaça de extinção), Coral Vivo, Golfinho Rotador e Meros do Brasil.

Coral em primeiro plano e mergulhador, ao fundo, com uma câmera
Foto do projeto Coral Vivo, que nasceu no Museu Nacional, vinculado à UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que trabalha no litoral brasileiro e tem apoio da Petrobras - Athila Bertoncini/Projeto Coral Vivo

Rafaela Guedes, gerente-executiva de responsabilidade social da Petrobras, diz que a maior parte dos investimentos da empresa em fauna é voluntário. Na última década, bateram a casa de R$ 1 bilhão (computadas também aqui iniciativas que passam por educação, transformação social e criação de empregos, algo reforçado constantemente pela representante da Petrobras).

Vale registrar que há também financiamentos oriundos de TACs (termos de ajustamento de conduta). Nesses casos, um problema na atuação da empresa leva a um acordo extrajudicial com o poder público, para correção da situação, com destinação de verbas, por exemplo, a programas ambientais.

"O que a gente tem aqui talvez seja único no mundo", diz Guedes sobre os investimentos da empresa em conservação de ecossistema marinho. Aproveitando o mar, outro projeto, este apoiado pela Fundação Toyota do Brasil, é a preservação do peixe-boi marinho e de ecossistemas correlatos, além de corais, nos estados de Alagoas e Pernambuco, na APA (Área de Proteção Ambiental) Costa dos Corais.

Em parceria com a SOS Mata Atlântica e o ICMBio, o programa já colheu bons resultados com a reintrodução à natureza marinha de 18 peixes-bois. Em risco por causa da redução de seu habitat e de mortes por retaliações, a onça-pintada hoje é alvo de conservação. Maior felino das Américas, uma das espécies mais emblemáticas do Brasil, pintada na camisa da seleção, ela vem atraindo a atenção de turistas em safáris fotográficos no Pantanal.

A General Motors é outra marca de veículos que também está colocando seus carros por lá. A montadora iniciou uma parceria com o Instituto Homem Pantaneiro, de Corumbá (MS), no projeto Felinos Pantaneiros, que se dedica à proteção e ao manejo de bichos como a onça-pintada. Além de apoio financeiro, a empresa norte-americana entregou ao instituto uma caminhonete Chevrolet S10 Z71 para auxiliar no trabalho diário da organização.

Tanto a petroleira brasileira quanto a Fundação Toyota destacam que seus investimentos não são avulsos, mas estruturados e constantes. Também apontam para a tentativa de instruir e fazer com que os projetos acabem, eventualmente, caminhando por conta própria, com outras fontes de arrecadação.

"Quando falamos de conservação ambiental, de uma agenda positiva, quanto mais gente participar melhor", explica Otacílio do Nascimento, diretor-executivo da Fundação Toyota. "Hoje falamos em ‘greenwashing’ das empresas. Se elas não estiverem atentas e não tiverem um plano de ações, pode ser muito prejudicial para a reputação. Tentamos fazer isso [ações] de forma responsável. Esse é um caminho que todas [as empresas] precisam seguir."

De fato, complementa Blazek, as palavras "clima", "emissões" e "carbono" já estão no dia a dia corporativo, mas a pauta de biodiversidade tem começado a entrar mais e mais no radar, pelo menos no caso das maiores companhias.

"Estamos em construção da agenda da natureza. Ainda vai demorar um pouco para chegar", afirma Blazek. A lista de animais em risco no Brasil é grande, e as portas para quem pretende ajudar estão abertas.

Para isso as empresas têm algumas formas de participar —e a administração pública também, por meio de parcerias. Há patrocínios, associação via marketing e doações. Para pessoas jurídicas, a ajuda financeira pode ser convertida em incentivos fiscais. Existe ainda a possibilidade de uma participação mais estruturada pelo chamado Investimento Social Privado.

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