Movimento pela felicidade dos trabalhadores ganha força nas empresas

Pandemia e chegada de novas gerações às corporações aceleram onda que promove melhor qualidade de vida no trabalho

São Paulo

Em uma carta a Leopold, seu pai, que tinha lhe dado uma bronca pela falta de um emprego regular e pela gastança desenfreada, Mozart, aos 21 anos, escreveu: "A felicidade existe apenas na imaginação".

Imagine o compositor austríaco, tão genial quanto irascível, vivendo em uma grande cidade brasileira. Com alguns dias no mundo corporativo, ele provavelmente teria ainda mais convicção da ideia da felicidade como uma fantasia irrealizável.

Bruno Carone, CEO da Férias&Co, concede autonomia para os funcionários decidirem se irão ou não ao escritório,
Bruno Carone, CEO da Férias&Co, concede autonomia para os funcionários decidirem se irão ou não ao escritório, - Adriano Vizoni/Folhapress

Não é o que pensa boa parte de psicólogos ligados a empresas. Eles estão ao lado de um outro compositor, nascido quase dois séculos depois. "A felicidade vai desabar sobre os homens", canta o brasileiro Tom Zé em "Vai (Menina Amanhã de Manhã)".

Nos últimos anos, especialmente depois de março de 2020, quando a Covid-19 foi caracterizada como pandemia e mudou completamente a rotina de famílias e empresas, um movimento ganhou impulso nas grandes cidades brasileiras: a felicidade corporativa. Ou felicidade do trabalhador, como prefere a psicóloga Carla Furtado, diretora do Instituto Feliciência, que promove cursos para organizações há oito anos (Furtado morreu em 14 de outubro, duas semanas depois dessa entrevista).

Como havia acontecido antes nos Estados Unidos, o conceito tem se difundido no Brasil como desdobramento da chamada psicologia positiva, vertente desenvolvida pelo psicólogo norte-americano Martin Seligman, ex-professor da Universidade da Pensilvânia.

Grosso modo, a psicologia positiva é uma abordagem científica associada às emoções e reações que visam o bem-estar.

Até o final dos anos 1990, diz Furtado, "a psicologia acreditava que a felicidade era algo como a personalidade, que não oscilava muito ao longo da vida. Foi quando a Associação Americana de Psicologia [então presidida por Seligman] decidiu promover pesquisas nessa área.

Começamos a entender que, por meio de caminhos comprovados pela ciência, é possível fomentar a percepção de felicidade com algumas práticas".

Nos anos iniciais deste século, esses estudos chegaram às instituições e deram origem à psicologia positiva organizacional, que se baseia em dois pilares principais. O primeiro, segundo Furtado, é "reduzir estressores desnecessários, normalmente ligados à cultura organizacional e ao comportamento dos líderes". O segundo visa "ampliar o sentido do trabalho. É nesse ponto que vemos as organizações lidando com os propósitos".

O tema é debatido em centros de estudo no Brasil há mais de dez anos, mas "explodiu do fim da pandemia para cá", conta a diretora do Feliciência.

Conheço diversos empresários que tentaram voltar para o formato presencial [de trabalho], mas tiveram que recuar, retomando os sistemas híbrido ou remoto. Caso contrário, eles perderiam seus melhores profissionais

Bruno Carone

CEO da Férias&Co, especializada em benefícios de viagens corporativas

A fase de impactos severos da Covid-19 no universo corporativo ficou para trás, mas os níveis de estresse entre os funcionários continuam altos, revelou pesquisa do Gallup realizada em 160 países de abril de 2022 a março de 2023. De acordo com o levantamento, 44% dos participantes disseram ter experimentado muito estresse no dia anterior ao da entrevista.

"Com os aprendizados que a pandemia trouxe, intensificamos o nosso olhar atento para as questões que envolvem um ambiente corporativo mais saudável", diz Renata Simioni, diretora de jornada do colaborador do Grupo Boticário.

Entre as iniciativas ligadas à saúde mental da empresa, está o programa de psicoterapia em parceria com a plataforma Vittude, que realizou 29 mil consultas gratuitas de janeiro a julho deste ano.

Não é difícil perceber, portanto, como a pandemia deu fôlego a tudo que envolve a felicidade corporativa. Mas existe um outro fator tão ou mais relevante nesse processo: a chegada ao mercado de trabalho dos millennials (nascidos entre 1979 e 1995), sobretudo dos chamados "young millennials" (primeira metade dos anos 90), e da geração Z (entre 1995 e 2010).

Essas gerações são muito mais questionadoras do que as anteriores, segundo Renata Rivetti, diretora da Reconnect - Happiness at Work!, que promove cursos sobre temas como liderança positiva. Aos 42 anos, idade que a inclui na geração X, ela compara as diferentes maneiras de encarar o trabalho. "Se a minha geração aceitou abuso, essas novas gerações não querem mais esse status quo."

E o que diriam as gerações anteriores às de Rivetti? "Quando comecei a falar em felicidade no trabalho, minha avó dizia que, na verdade, ninguém mais queria trabalhar. Na visão dela, trabalho era para ser um fardo e estava tudo bem."

A psicóloga Carla Furtado é diretora do Instituto Feliciência, que promove cursos sobre felicidade no trabalho
A psicóloga Carla Furtado, que morreu em 14 de outubro, foi diretora do Instituto Feliciência - Pedro Ladeira/Folhapress

Conheça alguns dos conceitos desse universo da felicidade corporativa

CHO: Justamente para que a vida no escritório, na indústria ou no comércio não seja vista como um fardo, empresas têm incluído uma nova sigla em seus organogramas, CHO (chief happiness officer). A lista é crescente e vai de gigantes, como a Heineken, a companhias de médio porte, como a paranaense Pormade Portas.

O conceito foi criado em 2003 pela empresa dinamarquesa Woohoo Partnership. "O CHO é um gestor do projeto de felicidade corporativa e tem um papel mais estratégico do que operacional. É quem vai fazer pesquisas, quantitativas e qualitativas, para entender melhor o cenário da empresa e trabalhar num plano de ação", diz Rivetti, que, entre outras funções, é também CHO na Reconnect.

Tenha esse nome ou não, a função, como acontece com qualquer novidade, encontra resistência, mas a tendência é que se torne mais conhecida, dizem especialistas. O fundamental, diz Rivetti, é "manter o tema vivo" dentro da organização, como faz Bruna Fesneda na Basf.

Embora tenha se certificado como CHO, Fesneda responde como consultora de bem-estar da gigante companhia química alemã na América do Sul. Na prática, são as mesmas atribuições.

Entre os programas sob os cuidados dela e de sua equipe, está o Movimento Estar Bem, que inclui de bate-papos online com psicólogos a sessões de mindfulness.

Com os aprendizados que a pandemia trouxe, intensificamos o nosso olhar atento para as questões que envolvem um ambiente corporativo mais saudável

Renata Simioni

Diretora de jornada do colaborador do Grupo Boticário

É preciso que o contexto seja favorável para que as ações do CHO se tornem efetivas, pondera Daniele Garcia Schmidt, superintendente-executiva de gestão de pessoas e cultura do Sicredi. "A cultura de uma empresa é construída por comportamentos, símbolos e sistemas. Um novo cargo como esse é um símbolo, que pode ter sua importância quando apresentado ao mercado. Mas ele, sozinho, não diz nada se as pessoas, por exemplo, não se comportam de forma alinhada."

Sistema cooperativo financeiro com cerca de 43 mil colaboradores, o Sicredi tem entre seus trunfos o programa Sempre Bem, que oferece apoios psicológico, jurídico e até financeiro às equipes.

TRABALHO HÍBRIDO: Se pudessem escolher uma forma de trabalho, 28% dos brasileiros optariam pelo modelo híbrido, mostrou pesquisa do Datafolha de dezembro de 2022. Uma fatia similar, de 24%, preferiria o trabalho somente remoto, e 45% escolheriam a modalidade presencial.

"Conheço diversos empresários que tentaram voltar para o formato presencial, mas tiveram que recuar, retomando os sistemas híbrido ou remoto. Caso contrário, eles perderiam seus melhores profissionais", diz Bruno Carone, CEO da Férias&Co, especializada em benefícios de viagens para empresas.

Não existe, entretanto, uma única configuração de trabalho híbrido. Há companhias que optaram por um modelo 3-2, com três dias no escritório e dois em casa. Outras empresas escolheram o 2-3. E existem ainda aquelas que deixam a definição a cargo dos funcionários.

Esse último foi o adotado pela Férias&Co. "Damos autonomia para os funcionários. Quem quiser ir ao escritório vai, e quem não quiser trabalha onde preferir", diz Carone. Aliás, ele não gosta de chamar o sistema de híbrido porque "dá uma responsabilidade para o funcionário estar no escritório em algum dia da semana".

Tamanha flexibilidade, obviamente, não é factível em todas as situações. No caso do Boticário, as fábricas seguem majoritariamente o modelo presencial.

"O Grupo Boticário foi o primeiro da indústria de beleza a implementar um plano formal de modelos de trabalho mistos, com equipes remotas, híbridas e presenciais", conta Renata Simioni, diretora de jornada do colaborador da empresa.

Atualmente, diz Simioni, cerca de 23% dos colaboradores do Boticário atuam no formato remoto, 21% no esquema híbrido e 56% no presencial.

Bruna Fesneda, consultora de bem-estar da Basf, implantoubate-papo com psicólogos e sessões de mindfulness na empresa
Bruna Fesneda, consultora de bem-estar da Basf, implantoubate-papo com psicólogos e sessões de mindfulness na empresa - Adriano Vizoni/Folhapress

SEMANA DE QUATRO DIAS: Assim como o trabalho híbrido tem virado realidade em larga escala, chegará o momento em que vamos nos adaptar à semana de quatro dias? Não será uma mudança rápida, mas iremos vê-la, sim, diz Rivetti, da Reconnect, que preconiza o encurtamento da jornada sem perda de salário.

Em parceria com 4 Day Week, organização que desde 2019 testa reconfigurações do trabalho, a Reconnect organiza projeto-piloto com 20 empresas brasileiras. Neste momento, representantes das companhias acompanham aulas sobre temas como hiperfoco. No final do ano, darão início ao novo modelo, que se estenderá por seis meses.

"Quando os primeiros dados mostrarem que a produtividade se mantém e que a retenção de colaboradores é altíssima, as empresas não vão querer deixar a semana de quatro dias", acredita Rivetti.

Uma das entusiastas dessa configuração é Caroline Soldi, coordenadora de planejamento estratégico da Rede Alimentare, empresa de prestação de serviços em alimentação coletiva e uma das participantes do projeto-piloto. "Trabalhamos nesse padrão de cinco dias por semana e oito horas por dia desde os anos 1940, quando não havia email ou WhatsApp, e a telefonia era restrita. Isso vai mudar e precisamos nos adequar", ela diz.

Trabalhamos nesse padrão de cinco dias por semana e oito horas por dia desde os anos 1940, quando não havia email ou WhatsApp, e a telefonia era restrita. Isso vai mudar e precisamos nos adequar

Caroline Soldi

Coordenadora de planejamento estratégico da Rede Alimentare

"Parece utopia, mas fica claro que não é quando percebemos que não vamos simplesmente apertar cinco dias em quatro. É preciso redesenhar o ambiente, a organização, a tecnologia. As reuniões, por exemplo. Não estamos demorando muito em encontros improdutivos?", questiona.

Para Bruno Carone, porém, a semana de quatro dias é um obstáculo para o gestor que pretende conceder autonomia aos seus funcionários. "Em vez de estipular uma regra padrão, sou a favor de dar liberdade aos colaboradores para que trabalhem do jeito que se sintam bem."

FELICIDADE INTERNA BRUTA: Índice criado no Butão nos anos 1970, o FIB leva em conta fatores espirituais, sociais e ambientais, itens que o colocam como contraponto do PIB (Produto Interno Bruto). E o que isso tem a ver com empresas?

Depois de estudar o tema na Inglaterra e no Butão, Furtado trouxe para o Brasil o FIB como programa a ser aplicado pelas companhias. "O FIB nos propõe as condições para uma felicidade coletiva. O Estado não faz o cidadão feliz, mas trabalha para que isso se torne possível. Podemos adaptar essas ideias para os ambientes organizacionais", diz.

O programa começa com um amplo diagnóstico, a escala FIB. O passo seguinte, chamado de "educação para a felicidade", traz recomendações que variam de acordo com cada empresa. Além disso, a companhia forma um comitê transdisciplinar, que vai discutir periodicamente os pontos mais vulneráveis identificados na pesquisa inicial. Em geral um ano depois, a empresa passa por uma nova avaliação.

O bem-estar no trabalho é um tema que veio para ficar. As novas gerações valorizam questões como cuidado e propósito, por isso acho muito difícil que as organizações não acompanhem esse movimento

Daniele Garcia Schmidt

Superintendente-executiva de gestão de pessoas e cultura do Sicredi

HAPPYWASHING: Assim como o greenwashing, propaganda sustentável enganosa feita por empresas e governos, existe o happywashing, programas de felicidade corporativa com muito marketing e pouco efeito prático para os funcionários.

Para não levar a companhia a apostas mal-sucedidas, Daniele Schmidt, do Sicredi, dá uma dica: meça o que você faz. "A partir de dados mensuráveis, precisamos saber de onde saímos e aonde chegamos."

Os projetos de bem-estar corporativo se expandem, as tentativas de happywashing também. São situações em que, adaptando a frase de Mozart, a felicidade existe apenas no marketing vazio.

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