No mundo ideal, todas as pessoas seriam estimuladas a passar um pouquinho de água em uma embalagem reciclável antes de descartá-la na coleta seletiva. Mas, como às vezes o ótimo é inimigo do bom, é melhor não forçar a barra.
"Vou ser muito honesta com você: a gente ainda tem um gap gigante de educação, a população nem separa o reciclável do não reciclável... A gente tenta ir por partes. Primeiro, separar o reciclável do orgânico", diz Valéria Michel.
Diretora de sustentabilidade da Tetra Pak, ela afirma à Folha que o esforço precisa ser no sentido de facilitar a vida da população, já que as pessoas são um dos elos principais da cadeia de reciclagem no Brasil.
Os outros são o governo e a iniciativa privada. De acordo com a executiva, apesar dos avanços, existem falhas em todos esses níveis do processo. "Tem lição de casa para todo mundo", diz.
RAIO-X | VALÉRIA MICHEL
Diretora de Sustentabilidade para o Brasil e Cone Sul da Tetra Pak e presidente do Cempre (Compromisso Empresarial para Reciclagem). É formada em engenharia química pela Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e possui especialização em gestão ambiental pela Unicamp. Antes da Tetra Pak, trabalhou em empresas como General Motors e Crosfield
A caixinha longa vida já foi vista como vilã na reciclagem, porque a separação das camadas impunha dificuldades técnicas ao processo. Esses problemas foram superados?
Sim, foram superados. Como a embalagem tem três materiais, gera a percepção de que é difícil reciclar. Mas na verdade não é. A maior parte da embalagem é papel, então quem faz a reciclagem de uma embalagem longa vida é a indústria papeleira, que tem equipamentos padrão para isso.
O nosso processo foi no sentido de nos aproximarmos da indústria papeleira e demonstrar que a fibra dessas embalagens tem qualidade, que ela agrega valor. E, em paralelo, desenvolver tecnologia para reciclar o plástico e o alumínio, que seguem para outra indústria.
O consumidor precisa tomar cuidados específicos ao descartar esse tipo de embalagem?
Para qualquer material reciclável, tirar o excesso de material orgânico, passar um pouquinho de água —não precisa ser um monte de água, não é lavar— é uma boa prática. No caso das caixinhas, abrir as orelhinhas e deixar com menor volume também é uma boa prática.
Existe uma cadeia que vai manusear esses recicláveis, então pode passar três, quatro meses até chegar na indústria recicladora. Aquele pouquinho de leite, aquele pouquinho de material orgânico vai ter mau cheiro, vai gerar bichos, o que vai ser uma condição ruim de trabalho para quem manusear isso.
Mas vou ser muito honesta com você: a gente ainda tem um gap gigante de educação, a população nem separa o reciclável do não reciclável... A gente tenta ir por partes. Primeiro, separar o reciclável do orgânico, que já é um superpasso.
Em uma pesquisa nossa, 84% dos entrevistados [no Brasil] disseram se preocupar com as questões ambientais, mas 48% disseram que fazem a separação de reciclável e não reciclável em casa. Ou seja, a atitude está diferente do que é a consciência. Temos que trabalhar muito nessa atitude. Precisamos facilitar para a população; se a gente complicar, pode dificultar todo o processo.
Quais são as atuais taxas de reciclagem do Brasil?
Em relação à embalagem longa vida, a taxa de reciclagem do ano passado foi de 32,5%. Isso equivale a 89 mil toneladas.
Como esses números se comparam com os de outros países?
A Europa tem algumas taxas mais elevadas. Mas os países têm modelos diferentes. Não dá para comparar Brasil com Europa ou Estados Unidos, porque eles não têm a mesma realidade social que nós temos. Aqui no Brasil, a gente tem um fator muito relevante, que são os catadores. E nós precisamos incluí-los no modelo de reciclagem. Isso não acontece na Europa.
Além disso, o sistema funciona bem na Europa, mas com alto custo para o consumidor final. Aqui, não dá para ter um custo tão alto para a gestão de resíduos, porque isso limitaria o acesso ao alimento para muita gente.
No Brasil, a gente precisa encontrar um modelo que combine a evolução, a infraestrutura, o crescimento com a inclusão social. Esse é o grande desafio. Estamos falando de 1 milhão de catadores que dependem da reciclagem para sobreviver.
A lei está à altura do desafio [lei 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos]?
A gente tem uma legislação de responsabilidade compartilhada que é exemplar, porque ela mostra compromisso da indústria, do consumidor e do governo. Só que hoje, mais de dez anos depois da política nacional, ainda temos falhas nos três elos da cadeia.
A gente vê poucas cidades com infraestrutura de coleta porta a porta; poucas empresas investindo realmente na reciclagem pós-consumo; e nem todos os consumidores participando da separação dos materiais em casa. Tem lição de casa para todo mundo.
A Tetra Pak tem o objetivo de lançar, até 2030, a primeira embalagem cartonada totalmente sustentável. Como anda essa meta?
Sustentabilidade é um dos pilares da nossa estratégia global, e o desenvolvimento dessa embalagem para alimentos mais sustentável do mundo é um dos itens dessa estratégia. Vai ser uma embalagem totalmente de fonte renovável ou reciclada. A empresa investe 100 milhões de euros por ano só nessa linha de portfólio.
Como você pode imaginar, não é algo simples; não é só mudar os materiais da embalagem para papel, porque aí deixa de ser uma embalagem longa vida que preserva o alimento. Mudar a estrutura desses três materiais é uma grande inovação tecnológica.
No ano passado, lançamos na Europa uma embalagem com uma barreira alternativa de fibra, já como piloto. No Brasil, a gente começou uma substituição do plástico de origem fóssil para o plástico de cana-de-açúcar, que é renovável.
A pandemia provocou mudanças na rotina da Tetra Pak?
Como a gente está na indústria de alimentos, a fábrica não parou. O pessoal trabalhou em um esquema completamente diferente de segurança; para quem ficou em casa, mudou toda a forma de benefícios da empresa.
A Tetra Pak também criou o programa Bem Viver, que engloba tanto a questão de saúde física e mental como qualidade de vida. Temos psicólogos 24 horas por dia para treinamentos da liderança, para identificar dentro do time se tem alguém com problema, como endereçar para o canal correto.
Fora isso, temos trabalhado num modelo flexível: alguns preferem trabalhar no escritório, outros preferem em casa. Por último, também um programa de remuneração total, que são benefícios além daqueles mandatórios por lei.
Se as pessoas estão mais felizes, elas vão render mais. E a gente tem muito orgulho de dizer que a maioria na Tetra Pak tem muito orgulho de trabalhar na empresa e está aqui há muitos anos.
Tetra Pak ao longo dos anos
1951 -- fundada na Suécia
1957 -- início das atividades no Brasil, primeiro país para o qual expandiu operações
1978 -- primeira fábrica no Brasil, em Monte Mor (SP)
1999 -- segunda fábrica brasileira, em Ponta Grossa (PR)
2008 -- Projeto Conexões, que liga os mais diversos agentes da cadeia de reciclagem
2010 -- site Rota da Reciclagem indica mais de 4.000 iniciativas de coleta
2018 -- projeto Recicla Cidade, em parceria com a ONG Espaço Urbano, busca empoderar trabalhadores de cooperativas
2021 -- projeto Cataki+Longa Vida, que conecta catadores autônomos a cooperativas de materiais recicláveis de São Paulo e Belo Horizonte
2022 -- parceria com o Instituto Muda para orientar condomínios sobre separação dos recicláveis
2022 -- projeto Aterro Zero recicla ou reaproveita 100% do resíduo gerado na fábrica de Monte Mor
Jornada rumo a embalagens sustentáveis
2007 -- primeira caixinha com 100% do papel utilizado proveniente de florestas certificadas pelo Forest Stewardship Council (FSC) e de outras fontes controladas
2008 -- todas as embalagens produzidas nas fábricas brasileiras utilizam papel certificado pelo FSC®
2010 -- compromisso de zerar emissões líquidas de gases do efeito estufa em toda a cadeia de valor para 2050
2011 -- desenvolvimento de tampas a partir de polímero vegetal, à base de cana-de-açúcar
2015 -- embalagem refrigerada (na Europa), que é totalmente renovável
2017 -- embalagens assépticas com maior conteúdo de material renovável. Atualmente, no Brasil, podem ter até 91% de materiais renováveis
2019 -- primeiros testes na Europa com camadas de barreira alternativas ao alumínio e implementação dos primeiros canudos de papel retos e em "u"
2021 -- início dos testes na Europa com polímeros reciclados certificados, parte do compromisso de desenvolver a embalagem de alimentos mais sustentável do mundo: feita exclusivamente de materiais renováveis ou reciclados de origem responsável, totalmente recicláveis e neutros em carbono
2022 -- lançamento das tampas Tethered Caps (na Europa), para ajudar a prevenir o lixo plástico
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